E é em um dia frio depois de um dia frio embaixo do sol que se gasta aquele último passo, quando a mão enseja um aceno e rende o pé, é uma certa libertação. Fui até onde já não havia mas o homem, diz um algo dentro com uma voz fraca e distante, ali depois de todas as curvas e retas e cruzados todos os riachos e subido e descido todas as pedras e experimentado as sendas que encontrei, ali onde eu acreditava já não estar mais o homem era ali mesmo onde ele não estava, e então descansei.
Mas era um descanso ao mesmo tempo maduro, triste e luminoso. Um descanso com jeito de fluxo cósmico, um fim coerente - a coerência para o espírito é uma tipo de simetria, um ajuste, um alívio. Uma conformação.
Saio pela porta da frente com a cabeça sob o sol, em silêncio, radiante comigo mesma, o peito tão cheio de luz e nenhuma treva, saio quieta e ligeira, sem carga nenhuma em qualquer parte do copo e faço novamente o mesmo caminho, mas é um caminho novo, o mesmo passeio que apenas cabe um pé que se faz amplo e não aflige que vá um diante do outro, um por vez, devagar e atento, lenta e contente.
Ainda aparece Vênus às 11 da manhã neste hemisfério.
Ecletiquices
O que há nessa forma híbrida tão irritante,
é que ela é uma armadilha.
terça-feira, dezembro 03, 2019
domingo, março 17, 2019
Quando preciso ser eu mesma cruzo as pernas em lótus desfeita e sou apenas consciência sem corpo uma infinidade de tempo. Posso então ser minha mente, pensar, ter ideias sem pensar em meus joelhos que em ângulos de 90 graus exigem de mim periódicos movimentos. Não preciso pensar no eixo da coluna, sei que ela está ali mas já não pesa nem se pronuncia. Nada existe porque nada dói nem goza. É uma liberdade não ter corpo.
quinta-feira, novembro 08, 2018
Caatinga
Quando nasci sem entender porque
no mangue do mar do bioma mais originalmente desértico do país
chorei um pouco só, ainda que torto, porque logo vi um passarinho cantando em minha janela
e pensei que nesse mundo que eu acabava de chegar havia asas e um amarelo cor de sol - era um canarinho - que não feria
e um verde que esverdeava em algum lugar, só não sabia ainda onde, hoje eu sei
Mas eu não entendia nada da sobrevivência do homem ao deserto
Como esse homem se esverdeia?
Como esse homem não se fere?
Como sonha sem voar?
Há uma condição de adaptação que existe em diferenciar-se e uma condição de inadaptação que justamente consiste em identificar-se.
Explico
O homem do deserto não sobrevive ao deserto, vive o deserto, porque é diferente dele, porque ele se entende como homem que supera o deserto.
Eu achava que não me identificava com o deserto, hoje sei que não me identifico com o homem
No deserto, eu sou o deserto
sou a planta tesa dura e seca que se mantém em sobrevida agreste
silenciada quase morta
sou o chão fragmentado, esfacelado, um pó de chão de superfície frágil - o interior sabe-se que não, terra adentro, eu adentro, há vida em potência, latente - o homem anda nesse chão e ele vai se desfazendo, dócil
eu sou esse chão, no deserto
eu sou o céu azul nu e desbotado, o sol ferido que fere, o pássaro do êxodo
não há diferença nenhuma entre mim e o verde único do juazeiro na planície sem contar ao redor de si com vida aparente e só hoje entendo
O deserto não supera o deserto.
no mangue do mar do bioma mais originalmente desértico do país
chorei um pouco só, ainda que torto, porque logo vi um passarinho cantando em minha janela
e pensei que nesse mundo que eu acabava de chegar havia asas e um amarelo cor de sol - era um canarinho - que não feria
e um verde que esverdeava em algum lugar, só não sabia ainda onde, hoje eu sei
Mas eu não entendia nada da sobrevivência do homem ao deserto
Como esse homem se esverdeia?
Como esse homem não se fere?
Como sonha sem voar?
Há uma condição de adaptação que existe em diferenciar-se e uma condição de inadaptação que justamente consiste em identificar-se.
Explico
O homem do deserto não sobrevive ao deserto, vive o deserto, porque é diferente dele, porque ele se entende como homem que supera o deserto.
Eu achava que não me identificava com o deserto, hoje sei que não me identifico com o homem
No deserto, eu sou o deserto
sou a planta tesa dura e seca que se mantém em sobrevida agreste
silenciada quase morta
sou o chão fragmentado, esfacelado, um pó de chão de superfície frágil - o interior sabe-se que não, terra adentro, eu adentro, há vida em potência, latente - o homem anda nesse chão e ele vai se desfazendo, dócil
eu sou esse chão, no deserto
eu sou o céu azul nu e desbotado, o sol ferido que fere, o pássaro do êxodo
não há diferença nenhuma entre mim e o verde único do juazeiro na planície sem contar ao redor de si com vida aparente e só hoje entendo
O deserto não supera o deserto.
quarta-feira, novembro 15, 2017
e ainda sob as noites eu penso em você. foi um amor, seu amigo lhe disse, era eu o um amor. é, foi um amor, você respondeu confirmando, um amor, era eu o um amor. e ainda às noites sob os dias felizes, os mais felizes, eu tento entender por que penso em você, por que penso nesse em quem você nunca foi, nessa completa inexistência de você. eu era esse um amor e penso agora, à noite, nessa noite que encerra um dia meio lúdico na semana de trabalho, um feriado na quarta feira parece um pombo saindo de uma cartola de mágico, pois em um feriado, amanhã dia feira, e eu, nesse meio tempo entre o o mágico e a feira, penso em como é ter sido esse um amor para você nesse passado vaporoso, nesse passado sobre o qual às vezes penso mas que diabos é esse passado feito de nada mas que existe, existe?, não, claro que não existe, então o um amor não existe, o amigo não existe, nem o mágico, nem a feira, e de repente não existir existe demais porque a memória que é inventada permanece de um jeito meio bruto como quase tudo o que não existe, como os uns amores que se perdem nas calçadas das ruas que contornam as praias das cidades, como o choro engolido que não foi derramado no dia que o avião saía para o sul, como o outro filho que ainda não veio e já é capaz de triplicar a distância entre todos os passados inexistentes que supõem engendrar algum amor. o algum amor que afinal se esgueire como um ladrão por escuras escadas de um prédio velho de um bairro agitado em alguma cidade maravilhosa, que aguarde a campainha atender para poder entrar como se nem estivesse em um pedaço de apartamento, talvez o canto de uma sala, mas rápido porque sempre alguém pode chegar, alguém que existe, ainda que não um amor. alguém que não um amor mas sólido como uma torre de palavras.
domingo, setembro 24, 2017
domingo, setembro 10, 2017
vontade inquebrantável. ouvi sobre isso esses dias, há um tipo de vontade que não se pode quebrantar, que te reconecta com seu eu, independentemente. de qualquer coisa, do meio, do outro, do tempo, do espaço, da história, da dor e do desejo. já não me pergunto se é possível, pergunto-me, na verdade, como ela virá, quando e o que passarei no processo de acolhê-la para a minha vida. a quero. a terei. e prevejo varreduras, furacões, a presença amiga da palavra não. parece bom.
sexta-feira, julho 14, 2017
sexta-feira, julho 07, 2017
quarta-feira, junho 28, 2017
Sabe, aos poucos você nem dói mais quase nada. Você ainda existe, você ainda beija, ainda bate, ainda some com as chaves de casa, ainda passa o meu café, ainda brilha debaixo do sol, ainda zomba do futuro, ainda pulsa no meu pulso quando vem em uma tarde morna dessas, mas confesso que já não dói mais quase nada. Eu não tenho nenhuma pressa, sei que vai parar de doer um dia, pode vir enquanto não há adeus.
quinta-feira, junho 01, 2017
In the break of day
Hey, brothers
Say, brothers
It's a long, long, long, long way
Nasci terrena, fixa e cardeal. Nasci forte, ruminante e cega como um bode. Como um bode. Nasci poço de terra cavado a mão. Nasci olho que mira o alto da montanha. O alto da montanha. De terra, recebo chuva, tormenta, enxurrada. E também não recebo nada. Nasci densa, porosa, entranhada, firme, orientada. Ao mesmo tempo bode e montanha. A água com a areia brinca, na beira do mar. A água passa. A areia fica no lugar.
segunda-feira, maio 29, 2017
Sobre algumas coisas que aprendi das plantas:
Existem ciclos. Ainda que não se sinta, não se saiba, não se perceba nem se queira. Existem ciclos.
Não há diferença entre as existências, tudo existe e é interdependente: o vaso, a terra, a formiga, o ar, a água, a outra planta, o humano, a lata de tinta, o pássaro, o nada, a noite, o dia, a fumaça, o barulho, a visita, o excremento, o amor, a semente, o fungo, a alegria, o sulfato de cobre, o intruso, a bacia, a garrafa pet, a dúvida, o pote de azeitona, a memória, o medo, o buraco na parede que espera pacientemente a instalação de uma lâmpada, a energia. Tudo existe porque tudo existe.
É possível viver separado. É possível viver cada qual no seu próprio vaso. Quanto mais distantes os vasos, mais possível ser separado. Qualquer proximidade entre os vasos ameaça essa separação. A aproximação dos vasos fortalece a passagem do ser pelos diferentes ciclos.
Ainda que seja capaz de florir apenas uma única vez, nunca deixará de ser florífera. Se é o que se é, antes, muito antes do que se parece ou do que se mostra ser.
Tudo muda e não é demagogia. A flor seca, o fruto nasce, o fruto apodrece, a semente do fruto seca, um novo ramo pode irrompê-la, uma nova planta nasce. A isso se chama fluxo. Transformação, mutação, renovação, ciclo, são apenas partes do fluxo. O que move é o fluxo. O irrefreável fluxo.
A vida é sempre abundante. Mas se quisermos perceber isso, temos que acolher os ciclos. Somos frequentemente iludidos pelas flores e pelos frutos, como se só ali houvesse vida e abundância. A própria vida que uma planta mantém no inverno rigoroso ou na seca agreste já é abundância.
Tudo bem morrer.
sábado, abril 29, 2017
Tenho um laboratório de presente. É um laboratório lindo, sibiloso e dócil como o vento de outono lavando o sol do sudeste. Sonoro e vivo como a brisa do mar que conheci criança e carrego no peito. Nele é sempre dia. É onde o minuto se expande, o tempo se curva e há uma certa reverência em nós para a experiência possível desse tempo novo. E cheira bem, o danado, às vezes jasmim, outras romã. Houve um dia que cheirava a dama da noite, mas foi por um instante, logo nos devolveu o cheiro, com menos apego do que de costume frente a um cheiro tão burguês. Controlar o tempo é um hábito mesquinho do mercantil. É expressão de poder e posse e o presente é uma entidade delicada e livre. O presente é o gozo de tudo. É o exercício de ver apenas o que existe, o que é, o que está sendo, nem o que foi, nem o que vai ser, nem o que poderia ter sido, nem o que gostaríamos que fosse. E nos permitirmos o prazer de apenas ficar sendo.
terça-feira, março 28, 2017
O trabalho de desamar é ao mesmo tempo como o das formigas e os de Hércules. À medida em que é digno, bestifica. Se de um momento sente-se o genuíno prazer de vencer o passo dado, aquele tão humano, tão dentro do que sabemos ser nosso possível, de outro apavora - como se houvéssemos acabado de presenciar o nosso próprio suicídio - que não tenhamos caído no poço fundo do corpo nu que nos visita fora de hora.
domingo, março 12, 2017
Nunca havia percebido como você se mostra ameaçador. Como essa sua cara cortada no miolo de si aparece dura e constrangedora naquele retângulo que abre espaço para a sua casa virtual. Não parecem boas vindas, parece "só existe eu". Sofri anos culpada por meu egoísmo, mas agora me diga, como não ser egoísta perto de alguém que derrama ego? Como não ser egoísta com alguém que demonstra amor com objetivos, nem que seja por defesa? Por medo? Por não elaborar mas entender que há algo errado? Amor que se cobra, o que se é?
segunda-feira, março 06, 2017
sexta-feira, fevereiro 10, 2017
segunda-feira, dezembro 19, 2016
XII
Serena face
distanciando
o meu desejo.
Tão longe estás
que já nem sei
o que te assombra
alga ou areia
mar ou lampejo
de desencanto.
A minha boca
emudeceu.
Se retornando
não a encontrares
pensa no amor
chama e soluço
que se perdeu.
Solto os cabelos
e fico à espera.
Mas sobre mim
como na morte
crescem as heras.
domingo, dezembro 18, 2016
quinta-feira, dezembro 08, 2016
I
Amar um passarinho é coisa louca.
Gira livre na longa azul gaiola
que o peito me constringe, enquanto a pouca
liberdade de amar logo se evola.
É amor meação? pecúlio? esmola?
Uma necessidade urgente e rouca
de no amor nos amarmos se desola
em cada beijo que não sai da boca.
O passarinho baixa a nosso alcance,
e na queda submissa um vôo segue,
e prossegue sem asas, pura ausência,
outro romance ocluso no romance.
Por mais que amor transite ou que se negue,
é canto (não é ave) sua essência.
Amar um passarinho é coisa louca.
Gira livre na longa azul gaiola
que o peito me constringe, enquanto a pouca
liberdade de amar logo se evola.
É amor meação? pecúlio? esmola?
Uma necessidade urgente e rouca
de no amor nos amarmos se desola
em cada beijo que não sai da boca.
O passarinho baixa a nosso alcance,
e na queda submissa um vôo segue,
e prossegue sem asas, pura ausência,
outro romance ocluso no romance.
Por mais que amor transite ou que se negue,
é canto (não é ave) sua essência.
terça-feira, novembro 22, 2016
Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.
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