quarta-feira, agosto 26, 2009
Dora
Eu olhava pra ela, tanto, tanto que ela não podia me ver. Ela só passava, estampada, e falava, e falava, também tanto que eu eu não podia dizer-lhe nada. Eu só assistia, as mãos delas às voltas, do rosto, do corpo, nos cabelos, tão fortes as mãos dela. Ela me levava através de castelos, cirandas, moinhos, mirandas, luas, gôndolas, tangos, sistemas, campinhos, ela tinha o universo na palavra. Eu a levaria, Bruxelas, Salamanca, Viena, Cairo, Lisboa, Santiago, minha casa, meu jardim. Ela, que não esperava nada, passou e não pousou, não residiu, fincou estaca em outro jardim, e neste jardim, apesar dos avisos, seus pés passavam sobre as plantas. Eu só assistia, ela cada dia refazendo um pedaço do caminho, pedra atrás de pedra, um traço bonito, contornando uma casa, desenho bonito aquele que ela fazia. Ela deixou os cabelos crescerem, uma dia quase não reconheço, as mãos tinham parado, vestido era liso, boca não mexia. Eu acenei algumas vezes, só para dizer que estava ali, que ainda tinha aquele livro das metades que ela tinha me dado, queria dizer que a gente podia colar todas se ela quisesse. Ela nunca ouviu. Eu me mudei, comprei fruteira, geladeira, passagem para Berlim, dei alguns telefonemas ainda, mas ela nunca estava. Pensei na vida, nas escolhas, no que podemos nos tornar. Um dia descrobri que tinha deixado a casa, virado sambista, dançarina, não sei. Disseram que tinha agora muito pouca coisa, uma mesa, uma cadela, dois brincos longos e uma estante de livros, mas que dançava a vida divinamente.
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