quinta-feira, junho 18, 2015

Depois de tantos anos de silêncio – quantos? seis? oito? vinte? – eu já havia conseguido me habituar à pena e ao remorso. Porque é assim que acontece com as mulheres, temos o ancestral ensinamento de que é porque merecemos, porque é assim, porque é a vida, e se quando os homens se vêem condenados a vida se lhes termina, entre nós gangrena uma parte, ou sangrará eternamente, mas a vida segue, ainda sorrimos, ainda sonhamos, ainda. E há uma arte em conviver com algo sem esquecer e ainda assim viver a vida. Durante todo este tempo você sempre esteve ali, e não estava. Era como um quadro na parede de um quarto pouco utilizado, ao qual não recorro sempre os olhos, mas sei que está lá, e às vezes lhe visito. Depois de tantos anos eu já tinha aprendido a saber o que sentia, a deixar doer e a deixar parar de doer respeitando os ciclos que a pena me impõe, mas principalmente eu já tinha aceitado que não era possível mais qualquer esperança de absolvição. Das poucas, esta era a maior certeza, com alguma sorte, apenas eu lembraria porque era eu quem deveria carregar o peso e a vergonha num andor. e você? ficaria livre. Mudaria de cidade, aprenderia a dançar, faria muitos amigos – sempre acreditei que um dia você levantaria a cancela do seu coração e nesse dia essa fila dos confusos, que fica do seu lado de fora, só olhando, imaginando como é aí dentro, te faria uma visita, e sempre achei que você os receberia, bem aos poucos, e aos poucos ia se deixando inundar pela tolice das ilusões dos tolos, e é claro que eu estava errada, só te sonhava um pouco de paz. E que me esquecesse. Sempre sonhei que me esquecesse, que se cruzasse com meu nome estranho por algum azar em uma agência de viagens, em uma revista de fofocas, em uma sapataria, sempre desejei que você sentisse como se fosse a primeira vez – que ouvia esse nome. Te sonhava livre, te sonhava todo claro, teu mistério todo resolvido. Era um jeito de eu também ser livre. Se me matasse, eu podia já não ser mais eu, e não haveria mais pena. Então sem aviso você passa em frente à minha casa, eu saía e você me dá um olá por trás da porta de vidro. E desaparece como um fantasma. Depois de todo esse tempo eu já sabia te silenciar. Quando às vezes você aparecia, em uma porta de um prédio velho do centro da cidade, em um restaurante italiano decadente, em um bar escuro daquele prédio labiríntico, eu já sabia o que fazer. Tive muito tempo para desenvolver a bem sucedida estratégia de te ouvir, mas só um pouco por vez. Eu te dava um tema cada vez que aparecias, mas só um. Que me doesse, mas fosse aos poucos. Que me sangre, mas só uma vez por mês. É uma sabedoria tão antiga essa, você iria gostar de ouvir sobre ela, mas esse também foi um tema e já teve a sua vez. Agora eu olho para aquela porta e tem sua imagem doendo minha retina. Eu já quase tinha conseguido esquecer o contorno do seu nariz. Ou pensava, ah, estará diferente, já se passaram tantos anos. Deve levar agora uma cara estranha, se não, com certeza uma expressão que já desconheço. Porque a verdade é que te desconheço. Mas não. Seis segundos em seis anos bastaram para que eu recordasse os detalhes todos, até os que me causam mais temor. Ho paura de tuoi occhi. No começo fiquei feliz. Pensei que virias a tomar um café. Que você tinha arrasado a cidade e aberto as portas de todos os calabouços e Que já não importava, que havia sido invadido por um amor cristão e que as ilusões dos tolos tinham te conquistado e te vencido. Que você tinha passado a régua qual conta pendurada no bar. Que eu já não ia mais precisar te calar, te resolver através de imagens primitivas, que você finalmente tinha entendido que não tenho grandeza, nem vileza. Pensei que finalmente eu já havia perdido a beleza, o espírito, a inteligência, a juventude, que havia finalmente alcançado a queda, aquele ponto em que uma mulher já não ofende com sua presença. Foi algo que desejei intensamente, no início do seu deserto. Eu sofria seu silêncio e desejava ser o oposto do que pensava que te encantava. Eu estava disposta a uma troca para te ter por perto sem desejo, sem ganas, mas perto. Então considerei que esse dia havia chegado, era um olá de desprezo a este meu presente insignificante, em certa medida, um olá de tudo bem você pode existir na minha vida um pouco. Depois que estava morta. Se morta, livre. Se livre e morta, que você já nem sabia meu nome, que dirá seu revés. Que ya no te suena mi nombre, mi cara, ni nada. Que foi sem querer. Que foi por acaso. Que foi um olá a um transeunte, um olá educado, você sempre foi educado, sempre foi gentil, um olá gentil de quem se esforça por olhar o outro. Muitas pessoas passam por desconhecidos todos os dias nas grandes cidades, mas raramente lhes dedicam um olá. E você é dos que dão olá a desconhecidos. É algo que sempre vou admirar em você. E eu não sei se respondo seu olá, com um oi, com um sorriso ou se te obedeço e faço de conta que não te vi.