quinta-feira, abril 23, 2009

Hoje sentarei na praça, ao lado da cavalaria.
Ficarei feliz por estar em sua companhia
Vestida sem roupas e desarmada até os dentes.

segunda-feira, abril 20, 2009

Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
A minha independência tem algemas.

sexta-feira, abril 17, 2009

- Ora, vai mulher! Vou dizer o quanto te amo.

Eu me chamava Carmelita e tinha umas veias azuis meio saltadas na perna esquerda. De vez em quando eu supunha um amor, mas não passava da sexta-feira. Tinha em casa muito bem guardados três colares de contas e um potinho de pó de arroz Lady. Duas pedras gêmeas que havia me dado uma cigana na feira, estas eu carregava comigo, uma no pescoço, outra no sutiã. Depois me tornei Rosa, como as turmalinas.

Eu estava certa em supor amores. Andava descompassada puxando a pena esquerda, mas aquele nêgo que subia a ladeira achava que eu dançava. Me pegou num tombo, uma mão foi no colar e enrubresci como se tivesse um rouge Carmin.

Uma noite cheguei e tinha me pintado o barracão todo de verde e rosa. Então eu era sua bandeira verdadeira, a glória nacional, sua aquarela brasileira. Quando eu saía pedia tamborins de grande gala, para que eu passasse, de sandália e vestido de malha, no meio daqueles bambas. E eu desfilava pro meu mulato forte, cambaleando, era só o que eu queria.

Aquele ano minha escola estava tão bonita. Ensaiei meu samba o ano inteiro, gastei tudo em fantasia, ele dormiu todo o dia. Com muitos brilhos me vesti, depois me pintei. Eu saía para a avenida, ele vestia o bicolor já dizendo que eu era sua nega, sua musa, amada e idolatrada e que jurava por deus, jogava fora o chinelo, o baralho e a navalha e ia trabalhar. Era tudo o que eu queria ver.

Carnaval, desengano, deixei a dor em casa me esperando e brinquei. Precisei voltar mais cedo. Meu moreno fez bobagem, maltratou meu pobre coração, aproveitou a minha ausência e botou mulher sambando no meu barracão. Deixou que ela passeasse na favela com meu peignoir, minha sandália de veludo deu à ela para sapatear. Esse moreno me deixou sonhando, quarta-feira sempre desce o pano. Amaldiçoei o dia em que lhe conheci.

Hoje a perna anda pelas tabelas, não dança, desce o morro manca, e do tombo minha palma encontra o chão. Sei que o barracão dela anda todo azul e branco e que ela é sua diamantina presença, gota de luz sobre a relva, sua estrela guia, seu brilhante bem-querer.

- Vou abrir a porta para você entrar, mas não demore, que a outra pode lhe encontrar.

quarta-feira, abril 15, 2009

singela solução
para os fadados a serem brancos desde o dia do nascimento, fez-se a tinta de jenipapo.

sábado, abril 11, 2009

Sim, levei o xeque-mate. Estava sentada na mesinha da praça e eles eram muito melhores que eu. Consegui algumas vitórias, às vezes até voava no tabuleiro, parecia que era tudo meu. Mas deveria ter parado partidas antes. Alguém me disse uma vez, "xadrez não é jogo para mulheres. Não tente o mundo dos homens, eles te puxarão o tapete quando mais distraída estiver. Não por mal, nem estarão errados, nada disso, é que, apenas, têm melhor consciência que as mulheres daquilo que é deles. E têm, geralmente, muito. Não jogue com os homens, eles sempre ganham". Estava olhando as montanhas naquele absurdo de verde, pensando que deveriam ser macias e doces, quando ouvi o estalido, ele batia freneticamente no sino do relógio, era a minha vez e eu deveria ver de imediato sua cilada. Seus amigos me olhavam, uns orgulhosos, outros se sentindo muito bem representados, outros com aquela cara de "eu já sabia", "lugar de mulher é no fogão"ou "bem que nós tentamos avisar" e eu olhava suplicante para a minha rainha, pedia ajuda, meu rei estava enrascado. Como não havia o que fazer levantei rapidamente, baixei a cabeça acenando agradecida aos senhores pelo privilégio da partida, como fariam os cavalheiros que eles não puderam ser. Meu rei não pôde fugir e eu não pude salvá-lo, e às minhas costas, os homens confrades comentavam que meu bando havia sido derrotado e já se retirava. Segui por uma estrada empoeirada amargando o gosto da derrota, e sabia que eles, ao anoitecer, ergueriam bandeiras e chamariam as moças. Brindariam até a madrugada o alívio e a amizade, o chão borrado pelos passos sobre a cerveja derramada de tanto baterem as canecas tão forte umas nas outras; o chão borrado pelos passos que pude dar mas marcado ainda mais forte pelo que apenas avisto, a festa, a companhia, a música leve, a amizade dos iguais.

quarta-feira, abril 08, 2009

suspeitava

O fechamento em si mesmo, o enquistamento que ergue entre mim e o campo hostil uma barreira de proteção, é uma outra solução geralmente medíocre.

sábado, abril 04, 2009

Você vai resistir, mas vai se acostumar.

Em setenta, até já havia esquecido, ele tinha costeletas, lábio carnudo escarlate, dentes de marzipã, tantos cílios que pesam as pálpebras sobre os olhos verde-água, bigode terminando nas covas, uma energia revolucionária saltando a jugular e a testa franzida por uma inteligência ativa. Inaugurava o Teatro Bandeirantes e cantava os dias após os outros dias - e até acho que soubesse bem no que ia dar a passagem dos anos teria tido mais pudores.

Penso na minha mãe, aparece em meia dúzia de fotos avermelhadas com a minha idade, trabalhando 30% a mais que eu, cuidando de marido, dois filhos, mãe, pai, irmãos e enrolando os brigadeiros do meu aniversário, linda, muito mais que eu, e disposta. Só podia ser o Chico Buarque. Que ainda era lindo e jovem e aparecia cantando - você vai me velar, chorar, vai me cobrir e me ninar, menina - na televisão.
Desceu pra ver de perto o asfalto quente
Sentir a brisa e a água salgada do mar.