sexta-feira, outubro 22, 2010

sem ponto de cesura

Recebi uma ligação distante que me fez chorar depois. Era uma voz feliz, morena, com a vida como uma seta para o céu. Tem gente que consegue deixar grande tudo o que toca. Que tem agulha de ouro para costurar a vida. Eu, que só tenho uma almofadinha de alfinetes, acompanho a linha dela, tentando entender de que natureza é feita. Essa voz morena é assim.

quinta-feira, outubro 21, 2010

Frequentemente, em seus versos, Seixas falava de estrelas, flores e brisas, de que tirava imagens para exprimir a graça da mulher e as emoções do amor. Pura imitação: como em geral os poetas da civilização, ele não recebia da realidade essas impressões, e sim de variada leitura. Originais somente, são aqueles engenhos que se infundem na natureza, musa inexaurível porque é divna. Para isso, ou nascer nas idades primitivas, ou desprezar a sociedade e refugiar-se na solidão.

quarta-feira, outubro 13, 2010

Talvez eu tenha o dom do estrangeiro, da máscara, da tangente, do equívoco, do outro. Das coisas que passam e arranham, mas que dão margem a que eu escape e volte à terra natal, ao meu próprio rosto, à inserção, à remissão, a mim. Talvez seja isso o mistério - ir sem ir, aprofundar-se em algo que não lhe cabe - o desejo de desvendar o desconhecido para depois voltar.

terça-feira, outubro 05, 2010

meu filho,

da vida só há uma coisa certa a dizer: ela não vai te dar nenhum desconto. um dia você vai achar que pode abrir um campo possível, um lugar de conforto, um remanso, um pedaço de paz. você vai julgar ter domínio do mecanismo do sonho e da felicidade pelo menos em um lugar sequer, mas logo vai perceber que está enganado. não há lugar nenhum. a vida é uma almofada de alfinetes. o único possível paira inalcançável em nossa própria mente. um dia eu vou te dizer que pode ser em mim o seu repouso, que minha morada te cabe como uma luva, mas não acredite nem em mim, neste ponto somos todos incapazes, estamos todos enganados. o ser humano é uma ilha, alguém já disse isso por aí, não é nenhuma novidade. o próprio do humano é a capacidade de escapar do outro. eu escapo em mim mesma. se você tiver a mesma sorte que eu, talvez tenha alguma esperança.

domingo, outubro 03, 2010

Alguns dias acordo com saudades de você. Sabíamos como ninguém que toda compreensão de algo ou alguém é ficção, é desejo e falseio, e isso de certa forma nos fazia bem porque falávamos, falávamos, falávamos até cair a lua, cair o sol e cair a lua novamente. Alguns dias tenho saudades dessa dinâmica nossa, concentrada no presente, interessada em tudo que parece não despertar interesse algum nos que passavam a nossa frente desenvolvendo suas vidas numa espécie de progressão. Lembro que encontrávamos especial conforto naqueles que preparavam salas de teatro, que organizavam o saneamento da cidade, que vendiam pipoca doce em frente ao cinema apenas para espantar o marasmo e a solidão de ficar em casa numa sexta a noite. Pensávamos que eram vidas possíveis e reais e isso nos rendia mais alguma ficção. Tem dias que acordo com saudades de você e é uma espécie de prazer manter essas lembranças like a dragonfly.

sábado, outubro 02, 2010

Então achou que descobriu. O valor então era a nitidez. Teria que engolir isso goela abaixo porque antes era ainda pior, ninguém via nada, e quando passaram a ver pela primeira vez, todos estranharam, quase os saídos da caverna. Hoje todo mundo já se acostumou a ver, é isso que importa, entendia agora, o valor era mesmo a nitidez, e como o tempo passaria mesmo, a não ser que houvesse de sua parte um grandioso esforço de rejeição, iria também se acostumar.

Depois que pensou isso e em mais umas duas ou três coisas se lembrou do chá. Tinha impaciência para a conversa do chá, porque ali iriam lhe explicar mais umas duas ou três coisas como o que é existir, a moda em Paris ou a última série que está bombando na tv full hd, e essas coisas se já não sabia era porque não queria mesmo saber.

Para essas horas havia um estratagema. Ligava a rádio da cabeça, rodava o filme que passava em seu cinema íntimo, repassava algumas citações que não cansava nunca de lembrar. O problema do mundo é a falta de imaginação, tinha vontade de dizer, mas estava sempre bem na melhor parte da música, na melhor cena, naquela hora que não dá pra largar o livro, e depois acabava esquecendo.