quarta-feira, junho 25, 2008

Tá vendo aquela moça? Ela tinha pulsos firmes. Foi o amor. Não o dela, mas o do mundo. Saber que há descompasso e infinitude não parece algo assim tão justo, tão estável.

Em uma das manhãs ela abriu a janela. Pôs seu corpo vermelho pelo umbral. Ofereceu um brinde, uma trova, um travesseiro e um brinco para um rapaz, aquele rapaz da cicatriz na sobrancelha.

Ela também não o amou. Mas ele era a sua aventura. Ela se esmerava tanto em cócegas, em requebros, em respostas ligeiras e justificativas para as ausências dele, sempre tão instigantes, que o mundo passou a se portar pequeno: um ou dois bares, uma garagem, uma cama de casal ilícita, uma pizzaria e um tambor.

Ele tinha penas, faíscas, mentiras e uma cor branca, sem mancha alguma, limpa limpa limpa. Mais que isso ela não sabia porque ele não se mostrava gente, era mais uma aparição, um instante da noite, uma nota errada de compositor experiente. Era torto, como seu próprio corpo, escoliose, lordose, sifose, canal, olfato e tato, tudo torto.

Então era uma vez um jardim de inverno. A casa enorme, duzentos e trinta e três quartos, duzentos e oito banheiros, cinco varandões que cabiam mais de quatrocentas pessoas, cozinha com nove fogões industriais, quatro freezers torre, seis geladeiras frost free, sete liquidificadores auto clean e duas batedeiras inoxidáveis, mas apenas um jardim de inverno. Neste jardim, floriam mandacarus, orquídeas, damas-da-noite, porque são flores de seca, sorte e circunstância, respectivamente.

Os pensamentos às vezes têm sebes. Os dela se esgueiravam, corriam, contavam trinta e um, mas nem precisavam porque ela não se esforçava nada para que eles se mostrassem translúcidos, reais. Ela os queriam em determinados dias.

Quanto às palavras mágicas, há as que abrem portas, as que chamam tapetes, as que trazem desejos e as que fazem desaparecer. A função das orquídeas é emprestar a palavra certa na hora certa para a pessoa certa.

Foi assim que ele desapareceu entre dois aviões, três siglas, quinze dias e muitas orações. Então fez-se reveillon, a dama-da-noite chegou trazendo uma verdade branca e perfumada: ela era livre. Alguns dias depois entenderia que a aventura é como uma planta de espinhos fantasiada de flor de nome bonito. Ela era livre: pegou uma sacola e colocou o tambor, três cervejas que ainda restavam frias, vendeu o carro, saiu do emprego e se mudou dois mil e quinhentos quilômetros.

A mesma coisa fez o que dizem ter feito quem fez o tal do trilho do trem dos alpes. Construíram o trilho antes do trem porque sabiam que o trem viria. Ela desandou a estudar francês, beber cerveja preta, ser gentil com as pessoas e sempre achar o melhor que pode delas. Era assim que cumpria cada tábua de seu trilho, e era nesse trilho que ia por seu trem para andar.

Mas alguma coisa estava mudada. Sentia seu coração costurado como um bucho de buchada. Porque na aventura, na verdade, a gente fura o coração no espeto e põe para assar. E ainda brinca, dizendo que troca por um fígado, que este sim é de mais valia. Pois, o que ela muito depois descobriria é que depois de tanto tempo no espeto, ela toda era livre, tinha braços livres, pernas livres, cabelos mais que livres, olhos, mãos, bocas, dentes, palavras, gestos, cintura e mentes, tão livres, quase libertinos que eram. Mas seu coração estava empenhado na fila de órgãos esperando uma retina, ou todo costurado - feito bucho de buchada - na uti, ou ainda na ala dos queimados, porque, doido, fez que nem são lourenço: os perseguidores dos cristãos tinham-no posto para morrer numa grelha, a certa altura ele grita "virem-me de lado, que deste já estou pronto!".

Seus remédios eram yann, hilda, astor, rosa, paul, barros, jorge, ítalo, franz, luís, mikail, lygia, adriana, pizza, carangueijo, caqui, pão de queijo, bohemia, macarrão, petit gateau, rio de janeiro, recife, ouro preto, são joão, seu lar, o carnaval e alguns amigos, e eram remédios tão eficazes que em alguns momentos até se julgava curado, porque o tom que batia chegava até a parecer com aquele, de antes das aventuras, de quando era um coração cheio, atlético, praticante, um coração gostoso, temperado.

(Agora chega no ponto dessa história que não se tem mais muito o que dizer. Uma menina com um coração assado só pode ser alguém muito estranho.)

Acontece que ela tinha uns olhos de águia. Enquanto yann terminava seu décimo sexto disco, o 8102 fazia sua última viagem do dia, lygia completava seu septuagésimo segundo aniversário, o correio trazia a hilda que ainda não tinha, o pão cheirava no forno, ela entrelaça os dedos uns nos outros e pisca demoradamente tentando entender quando foi que o amor deixou de ter lugar e gravidade.

Algumas dúvidas fazem moinhos dentro da gente. Era o que sentia toda vez que fazia a escolha que julgava mais justa, correta, decente. Não porque não soubesse o que há de covardia em ser sempre justa, mas mais por perceber o outro lado da escolha, o que se pode fazer com uma semana de rotação e translação e, mas bem talvez, o quanto de tudo o que se sente é só palavra e gesto jogado ao vento, posto para debaixo do tapete.

O outro lado da escolha funciona mais ou menos como um outro lado de moeda. Você atira a escolha para cima e escolhe o que quer. Quando ela volta estampa a sua mão com a sorte pretendida. Aí você abre um sorriso, aquieta o peito, estufa o vazio e sai confiante na cara, por exemplo. Só que, escondida na palma da sua mão está a coroa, novamente como uma aventura, apontando um outro final para todas as histórias. E, o pior, provavelmente ela mesma será o final de uma outra história, que só não foi o da sua porque você escolheu a cara, porque era a mais justa e correta das escolhas.

(Ela tinha aprendido a ter esse tipo de pensamento durante as viagens de avião. Viajar de avião sozinho é tão aborrecido quanto tomar um sorvete de limão numa tarde quente de sol no lugar mais bonito do mundo, sozinho.)

Só que ela já sabia que quem muito se evita, se convive. As coroas tinham cara, nome e sobrenome, e lhe doíam inexatas como se fossem a própria escolha. As pessoas lhe davam nojo, eram como velhacas, sabidas demais; ou talvez essa fosse apenas a pena em ceder seu próprio lugar. (O que talvez se chame vaidade branda.)

Aquele mesmo corpo que cruzou vermelho um umbral, agora era um bumerangue gris (São sempre terríveis as contatações que tomamos no calor da luta) e ela procurava inutilmente por münchausen, em vez, encontrava dominique, "não tenha medo".

Não tenha medo. É que ela entendia, tinha olhos de lince, que era uma corrida contra o tempo. Sua casa já tinha só três quartos bem definidos e há muito tempo não havia mais jardim. Era uma casa real, alugada em uma outra cidade, com iptu e conta de energia no nome do locatário, e carregava em si os trilhos todos já bem formados, terminava uma estação. E em vez de jardim e inverno tinha um desejo roxo se realizando inteiro, e, depois do meio dia trouxe uma notícia boa, promessa de permanência, natal em fortaleza e carnaval em recife.

E o outro? O outro é como o planetinha do lampião, ela pensava. Apaga de dia e acende de noite dia após dia cada vez mais rápido. Assim são as pessoas. Ela vive no equinócio, mas as pessoas vivem no planetinha do lampião. O outro é um lampejo ligeiro. Todo outro é uma aventura. O nosso lugar no outro deve ser sempre despretensioso, porque de verdade não existimos. Ela entrou para concha, entendeu que a única coisa que tinha era seu corpo, tudo o mais perecia, ele inclusive, mas ele era a única coisa que podia construir. Tudo o que tinha estava dentro dela, ela era sua própria morada. E o outro? Aquele castelo lá da Disney. Aquela montanha de fantasia que constrói você. O outro não é uma imagem, ele é a nossa imagem. Quando a nossa imagem muda no outro, a gente muda um pouco no mundo.

Foi assim que ela deixou para trás uma agulha no colchão, alguém capaz de amar tanto quanto os dias da semana e o medo de que mais algo se quebre. Iria entregar um lápis, assitir a uma peça de rua e desejar toda a sorte de orquídeas para as coroas. Seus pulsos tensos apenas esperariam. O restante era silêncio.

quarta-feira, junho 18, 2008

Por una cabeza

ontem
hoje eu certamente aprenderia a tocar piano. uma canção marrom terra avermelhada, escura, da cor daquele piano bonito. eu ia saber exatamente o que fazer, era só olhá-lo e reproduzir com os dedos tudo o que ele representa. ao ouvirem, alguns chorariam, outros pousariam a mão sobre o peito e outros jamais entenderiam, mas as crianças estariam ouvindo pela primeira vez e saberiam que se trata apenas de algo belo. são sábias as crianças.

mais cedo
hoje eu tocaria meu tambor sem erro, cega. o talabarte rasgaria o ombro, ia bater couro até suor voltar para o sangue, e iria me sentir em casa. tocaria sem parar até a noite ficar amarela.

agora
ter um peito cheio é uma dádiva.



Ah, não existe coisa mais triste que ter paz.

terça-feira, junho 17, 2008

a liberdade é um carnaval.

sexta-feira, junho 13, 2008

da casa
você pavor, eu paixão

do meu drama de amor
me consolava com o mar

da ladeira da saudade
ninguém sabe onde é que está o segredo e a liberdade

e quer saber?
dos indies
pouco me importa, bom mesmo são os atletas.

terça-feira, junho 10, 2008

coisas a se entender bem melhor quando se mora por algum tempo nas Geraes

O mundo não vale o mundo, meu bem.

Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.

O mundo, meu bem, não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir,
de quê? de mim? ou de nada?
O mundo valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa... e sobe
algum som deste declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
Não é suspiro de grilo,
voz noturna de nascentes
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.
Tampouco a respiração
de soldados e de enfermos,
de meninos internados
ou de freiras em clausura.
Não são grupos submergidos
nas geleiras do entressono
e que deixam desprender-se,
menos que simples palavra,
menos que folha no outono,
a partícula sonora
que a vida contém, e a morte
contém, o mero registro
da energia concentrada.
Não é nem isto, nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta.
De sofrer e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
de escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos , meu bem, de conta
- mas a conta não existe -
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundo: idéias.
Deixemos o mundo aos outros,
já que o querem gastar.
Meu bem, sejamos fortíssimos
- mas a força não existe -
e na mais pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
levar na palma do tempo
- mas o tempo não existe -
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o mundo.

sábado, junho 07, 2008

pés no chão

podem ser um recado, um bilhete, uma declaração, um aviso, uma lembrança.
pode ser aquela voz que dobra a esquina, pousa na janela, trai um aceno. ou a tua mão, num revés fantasma, aquela carta que chega fazendo algazarra e esconderijo, que diz mais que o que eu poderia saber, e que sei sem lê-la, a sei prévio, suspeição.

há tempos que intuo, torres de igreja, bolhas de sabão, aquela mesma em uma outra situação. e não me venha dizer qualquer outra coisa, sei das cartas sem ler, sei das curvas sem seguir, sei do vento de onde vem, tenho olho comprido, só você não vê, que para cada raio amarelo uma montanha verde corresponde em vários tons, uma saia molhada cola o corpo de quem apenas espera e assiste movimentos em torno de si, sei meus joelhos tão livres, róseos, duros, e eles não precisam de tremor, estão de novo jovens, e meu ventre, que já foi seco, teso, chuvoso, dança desritimias e compassos, euforia de paz, de tão a si encontrado, que não lhe cabe disputa
por mais nenhuma luz na manhã.

observe minhas mãos, elas sabem, elas sonham, sonham mais do que seus próprios olhos seriam capazes, e furtam vazios, hesitações, regimes, transformam matéria em energia, condensam ar, desentopem caminhos com novas linhas, socam, evitam, fazem arcos e não esperam.

mãos são como olhos. silêncio abre portas. teimosia é diferente de certeza.
algumas coisas nos voltam. o espaço em branco pode ser uma boa medida.
sou feliz por fazer contas muito bem.

quinta-feira, junho 05, 2008

terça-feira, junho 03, 2008

de: Mirella Adriano > ocultar detalhes 2 jun (17 horas atrás)
para: jesus@purgatorio.org.ce
data: 02/06/2008 19:46

assunto: contestação de pagamento de pecado

enviado por
gmail.com

Jesus,

foi só um chiclete. Não acho justo. E já se passaram mais de 2000 anos. Nem combina com tanta bondade, tamanho ressentimento. Não acha não?