segunda-feira, dezembro 30, 2002

Camila

aí um dia a gente está indo pra faculdade e reconhece aquela pessoa que há um tempão vc não via. Como as coisas podem ser assim? Há cinco anos atrás ela dormia aqui em casa e me ajudava - entusiasmada - a abrir os meus presentes. Primeiro ela se assustou. Logo depois veio o pensamento de como poderia fugir de mim, porque de tamancos é meio difícil de sair correndo. Só depois me reconheceu. E rimos muito. Tentamos botar a conversa em dia durante o caminho. Quase bati o carro. Rimos de novo, a culpa era toda minha. Chegamos e não deu tempo de conversar tudo. Mas não era problema, amanhã ela vinha comigo de novo, ficou combinado. Amanhã era quarta-feira, eu não ia ter a primeira aula, não fui às sete, mas às nove. Ela deve ter me esperado um bocado. Pronto! Nos perdemos de novo, pensei. A prima dela mora aqui no prédio. Vou lá e peço o telefone dela e peço desculpas. Ah, Mirella... Você e essa sua mania de cuidar dos outros. Tu nem fala mais com a Lívia, vai lá na casa dela só pra pedir o telefone dela? Ela era tua carona, ora!... Falar a verdade, nem pensei. Tinha um livro da Lívia comigo fazia uns cinco anos – tudo foi há cinco anos –, “Sindbad, o Marujo”, levei mais como suporte que como pretexto. Na realidade, uma coisa era pretexto da outra. Eu tinha que devolver o livro mas não tinha coragem de ir só devolver o livro, e tinha que pedir o telefone dela, mas não tinha coragem de ir só para pedir o telefone dela. Liguei, pedi as desculpas que eu queria ter pedido e combinamos direitinho a nossa ida. E foi assim a semana, até que entramos em provas finais. Dessa vez não achei preciso ligar. Quando as aulas recomeçassem teríamos mais um semestre inteiro – o meu último – para pôr as conversas em dia. Tinha um cuidado meio especial com ela, porque os pais eram separados e ela não se entendia muito bem com o padastro, os tios às vezes tinham umas conversas estranhas, injustas, discriminadoras. Nem sei se por isso mesmo tínhamos um carinho uma com a outra até maior que a amizade. Ligar daquela vez foi a melhor coisa. Deixar mais perto do bloco dela e depois voltar pra estacionar, também. Ouvir, acreditar, apoiar. Torna mais fácil. Ainda bem que tenho desses cuidados. Parece que sem querer eu sei que temos as pessoas naquele dia e não daqui a alguns meses. Que tem certas coisas que não faz muito sentido deixar pra depois ou se poupar de fazer, por esse, aquele ou outro motivo. Que as pequenas coisas, as mais pequeninas, que quase não requer esforço da gente, são as que a gente nunca faz, por achar desnecessário fazer de tão pequenas, mas são elas que nos tiram os pesos, são elas que nos deixam em dia com as nossas pessoas. Ela, eu não verei mais, nunca mais, mas enquanto pude ver, vi de verdade, não deixei pedidos de desculpas, desentendimentos, para serem resolvidos depois, nem desejos de felicidade, nem abraços. Não liguei no natal, mas nunca encontrei com ela em um lugar que não a abraçasse e não sorrisse. Não me conversou todos os problemas da vida, mas não houve um conversado que eu não fosse toda ouvidos. É como eu já falei. Era um carinho tão grande, tão enorme, de tanta admiração, que era maior que a amizade, se a amizade depender de tempo de convivência. Mas dizem que amigo é aquele que não faz questão de si e se empresta pro outro. Então fomos.

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