domingo, janeiro 26, 2003

Eu não gosto

Eu não gosto de não acreditar em mim. Eu não gosto de dormir quando a luz entra pela fresta de cima da porta. Eu não gosto de panos saindo pela gaveta. Eu não gosto de cortina de pano. Eu não gosto de cor-de-rosa. Eu não gosto quando no quarto não tem abajur. Eu não gosto quando a pessoa me pergunta exatamente o que eu já ia dizer sem que ela perguntasse. Eu não gosto de molhar apenas a barra da calça nas poças de chuva. Eu não gosto de presunto, bacon (nome horrível esse, bacon) e linguiça. Eu não gosto de passar cremes no corpo. Eu não gosto de viagens curtas. Eu não gosto de crianças calmas demais. Eu não gosto quando mexem nas minhas gavetas. Eu não gosto de ouvir a minha voz. Eu não gosto quando muitas pessoas me chamam ao mesmo tempo em dia de calor. Eu não gosto quando a borrachinha do limpador deixa ainda uma lista de agua sem secar. Eu não gosto de livro sem orelha. Eu não gosto de inglês. Nunca gostei, acho que nunca vou gostar. Eu não gosto de apontar com estilete, gosto de brincar de acabar o lápis com o estilete, apontar não. Eu não gosto de saia. Eu não gosto de grito de mulherzinha. Eu não gosto de frases feitas e generalizadoras. Eu não gosto quando o ator deixa perceber que a fala foi decorada. Eu não gosto quando a direção puxa mais para um lado. Eu não gosto de café-com-leite. Mas bebo. Eu não gosto quando, cabendo a palavra tenho, usam comprei. O fato de se gastar o dinheiro com isso vale mais que a coisa possuída? Eu não gosto de passar a minha roupa. Eu não gosto de chinela molhada. Eu não gosto de dormir expondo da cintura aos joelhos. Eu não gosto de varrer estando calçada. Eu não gosto de pensar que o tempo passa. E, decididamente, é melhor falar do que se gosta.

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