segunda-feira, outubro 13, 2003

J'y suis jamais allé

"Eu já dei risada até a barriga doer, já nadei até perder o fôlego, já chorei até dormir e acordei com o rosto desfigurado. Já fiz cosquinha na minha irmã só pra ela parar de chorar, já me queimei brincando com vela. Eu já fiz bola de chiclete e melequei todo o rosto, já conversei com o espelho, e até já brinquei de ser bruxo. Já quis ser astronauta, violonista, mágico, caçador e trapezista. Já me escondi atrás da cortina e esqueci os pés para fora. Já passei trote por telefone, já tomei banho de chuva e acabei me viciando. Já roubei beijo, já fiz confissões antes de dormir em um quarto escuro para o meu melhor amigo. Já confundi sentimentos, peguei atalho errado e continuo andando pelo desconhecido. Já raspei o fundo da panela de arroz carreteiro, já me cortei fazendo a barba apressado, já chorei ouvindo música no ônibus. Já tentei esquecer algumas pessoas, mas descobri que essas são as mais dificeis de se esquecer. Já subi escondido no telhado pra tentar pegar estrelas, já subi em árvore pra roubar fruta, já caí da escada de bunda. Conheci a morte de perto, e agora anseio por viver cada dia. Já fiz juras eternas, já escrevi no muro da escola, já chorei sentado no chão do banheiro, já fugi de casa pra sempre, e voltei no outro instante. Já corri pra não deixar alguém chorando, já fiquei sozinho no meio de mil pessoas sentindo falta de uma só. Já vi pôr-do-sol cor-de-rosa e alaranjado, já me joguei na piscina sem vontade de voltar, já bebi uísque até sentir dormentes os meus lábios, já olhei a cidade de cima e mesmo assim não encontrei meu lugar. Já senti medo do escuro, já tremi de nervoso, já quase morri de amor, mas renasci novamente pra ver o sorriso de alguém especial. Já acordei no meio da noite e fiquei com medo de levantar. Já apostei em correr descalço na rua, já gritei de felicidade, já roubei rosas num enorme jardim. Já me apaixonei e achei que era para sempre, mas sempre era um "para sempre" pela metade. Já deitei na grama de madrugada e vi a Lua virar Sol, já chorei por ver amigos partindo, mas descobri que logo chegam novos, e a vida é mesmo um ir e vir sem razão. Foram tantas coisas feitas, momentos fotografados pelas lentes da emoção, guardados num baú, chamado coração. E agora um formulário me interroga, me encosta na parede e grita: "-Qual sua experiência?" Essa pergunta ecoa no meu cérebro: "- Experiência... experiência... Será que ser plantador de sorrisos é uma boa experiência? Não. Talvez eles não saibam ainda colher sonhos."

Recebi isso por e-mail. Tive a sensação que mais alguém sabe mais de mim que eu mesma. Sabedorias de internet a parte, é isso mesmo. É isso. Mas eu vou. Na terça eu vou lá, e sei que vão me perguntar, "e qual a sua experiência?" Que saco. Ando estranha demais, sem divertimento. Logo eu que me fazia feliz por nada, do nada, inventava as minhas diversões, tinha o meu mundo. Antes era assim, eu não tinha nada, tava feliz da vida, fazia um estardalhaço, testava as pessoas, para ver o quanto elas fariam por mim, pela minha infelicidade. Fazia questão de triplicar todas as dores, os anseios, as raivas, os medos. Hoje, que é tudo de verdade, ninguém sabe, ninguém vê, e se vêem, isso me enche de vergonha, de desconcerto. Ela dizia que ia ser assim. Ela sempre diz coisas certas, mas sempre bem antes da hora.

Ontem encontrei uma caixa. Minha vida dentro dessa caixa. A caixa eu recebi quando completei quinze anos. Vinha com um abajour, que hoje está lá no sítio e que a Mariana deixou cair. Depois a Bia colou. Foi pra lá porque era rosa e tudo aqui mudou, tem todas as cores agora, menos rosa. Recebi esse abajour de dois irmãos, Natasha e Pablo, moram no prédio do lado, ou moravam, já que não sei deles há muito tempo. Dentro da caixa, cartões, bilhetes, conversas de sala de aula, cartas de amor, cartas de amigos da mesma cidade, cartas de desconhecidos que colecionavam - ou colecionam? - fotos da Xuxa, cartas de 'amigas' de férias que nunca tornei a ver. Cartões que não me dizem mais nada, que não lembro do rosto do nome, Prisicilla, quem será você?, e cartão sincero "para uma das pessoas mais maravilhosas que já conheci" sem assinatura. Um postal da mãe, praça de Santelmo, na Argentina, e tango. Cartas que não enviei, muitas dessas. Pensei em enviar agora, totalmente fora de contexto, do nada, só porque não me pertencem, mas fiquei quieta. Num dos bilhetes combinávamos de estudar. Eu iria para a casa da Flávia e ela iria começar a estudar às duas. Lembrei da letra bonita dela, que tinhas dedos finos e longos e a palma da mão delicada e sem força nas linhas. Eu gastava horas olhando a mão dela. Ela me chamava de bestona. Tenho saudade. Dói essa saudade. Perplexa em perceber como algumas pessoas passaram anônimas. E não faz muito tempo essas coisas, não tem tanto tempo assim que tive dez, doze anos. Aluguei o filme. Vi de novo. E lembrei de quando encontrei no meio de outros papéis o telefone da Camila, fiquei sem saber o que fazer com este telefone o qual eu não ligaria mais. No filme o senhor que perdia o amigo apagava o telefone dele da caderneta. O telefone da Camila estava num papel solto e de caneta, eu não poderia me desfazer com tal respeito, teria de jogar mesmo fora. Não pude. E, sozinho, ele se perdeu. Essa minha memória é mesmo estranha.

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