terça-feira, março 02, 2004

Tem alguma coisa nisso. Sei que tem. Alguma beleza, alguma poesia, algum mistério. Ou é a gente que tem, dentro, e que imagina beleza no mundo. É vai ver ele não tem. Vai ver, não há nenhuma beleza - nem a menor importância - em se imaginar como seria a mulher que no dia dois de março de dois mil e quatro arrancou uma folha de seu bloco da TREIDE - Apoio Empresarial Ltda, escreveu a lista da feira e se dirigiu até o supermercado. Que por algum motivo ela resolveu não levar os quatro chuchus e de onde ela é que chama palma de bananas me vez de penca de bananas. E mulher imagino por causa da caligrafia arredondada, feminina. Além de arredondada é firme e o til - ela queria três mamãos - é uma bolinha em cima da letra - será uma gorda? Imagino cabelos pintados de cor estranha, um castanho avermelhado. Fiquei pensando por que a imaginava assim, depois reparei que é meio moda entre as mulheres de meia idade. Outra suposição: ela tinha meia idade. E tinha panelas de alumínio e o fogão não era elétrico. Ou o maço de fósforos serviria para acender cigarros e o bombril - sempre a marca pelo produto - seriam utilizados na limpeza da casa ou na antena da televisão. Não há mais muito o que ver no papel: dois quilos de batata, duas caixas de sabão em pó, dois detergente para louças, não dizem lá muita coisa, todo mundo usa mais ou menos do mesmo jeito. Mas o que me intriga não é nem isso, não é nem quem é ou como será essa mulher. Nem sei o que é, mas alguma coisa no fato de irmos nos deixando nos lugares, os pouquinhos de nós que ficam nas coisas, nas pessoas, e delas em nós, nossos resíduos - Pois se sabe, de tudo fica um pouco. Impossível pensar o mundo sem resíduos, pelo menos pra mim. Uma vez, voltando da faculdade pra casa, parei num cruzamento, o maior do percurso, três sinais, uma chatice, sempre cheio de gente, as mais diferentes querendo as mais diversas coisas. Era noite, não havia ninguém, nem sei porque. Mas havia junto ao semáforo, no meu lado esquerdo, uma pedra. Uma pedra grande, completamente plana em cima, retangular. Compreendi na hora. Não era uma pedra na realidade, era uma cadeira, um banco, um tamborete. Do jeito que estava disposto era claro que servia para que alguém sentasse de modo a olhar na direção dos carros que passavam na rua. Até hoje eu lembro o rosto da idosa que eu sentei lá.

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