sábado, agosto 16, 2008


"Diz-se a um cego, Estás livre, abre-se-lhe a porta que o separava do mundo, Vai, estás livre, tornamos a dizer-lhe, e ele não vai, ficou ali parado no meio da rua, ele e os outros, estão assustados, não sabem para onde ir, é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é, por definição, um manicómio, e aventurar-se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado de uma cidade, onde a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar."

Se proponho-me a pensar a cegueira, vêm-me, paradoxalmente, algumas imagens. A primeira delas é a porta. Sempre uma porta fechada, como se tal os olhos fossem a janela da alma, a porta, uma espécie de janela da casa, ambivalente, pois vê-se de dentro para fora e de fora para dentro. Se perguntarem porque não usar a janela que já existe nas casas, responderia que porque acho que as janelas funcionam mais como ouvidos que como olhos. Sei que o que se diz ter ouvidos são as paredes, mas as minhas paredes apenas encarceram, são mudas, como são cegas as portas e surdas as janelas fechadas. Outro problema importante de considerar janelas como olhos, a meu ver, com o perdão do trocadilho, é a janela não ser passagem. E eu tenho dúvidas se os olhos não são passagens, acho aque são. Os olhos são mais capazes de permitir e bloquear acesso que qualquer outro órgão do nosso corpo. Os olhos oferecem mundos afora, mundos adentro, e são mais ativos que expectadores desses mundos. Olhos não têm parapeitos, olhos têm portais. Olhos são ultrapassáveis com os caminhares, com os calcanhares, ventres, e expectativas que temos ao nos colocarmos de dentro para fora ou de fora para dentro de algum recinto. Se nosso corpo é a nossa morada, nossos olhos são as nossas portas.

A segunda imagem, também cega, é a da porta aberta. Quando fechada, nos impossibilita, e é claro que se seja cego para o que está do outro lado. Mas não é apenas assim. Quando aberta, é a cegueira da profusão, do inúmero, do excesso, do possível. A cegueira do desgaste da decisão, do embate da escolha, da opressão da atitude, da exaustão da liberdade. Uma porta aberta é tão impossível como uma porta fechada. E, mesmo que possamos ter todas as imagens do mundo que miramos, interno ou externo, somos delas tão cegos como se não as víssemos. E isso sabemos, sentimos, sofremos mais que as portas que nos fecham à cara. Uma porta aberta é uma porta fechada.

A outra imagem que me persegue é a dos olhos dessa estátua. Eu gostaria de escrever sobre ela mais poeticamente, talvez um dia tente, mas esse dia não será hoje. Hoje é o dia que a mão está em eterna suspensão, talvez um dia ela acorde, talvez um dia ela beba do cálice, mas hoje ela é apenas o que é, uma suspensão. Hoje é simplesmente o limite frágil entre o que existe ainda e o que vai passar a existir logo depois. E é justamente essa suspensão que me parece a cegueira mesmo, a própria, a não exatamente física, mas a ausência de possibilidade. O que há de diferente entre a imagem dessa estátua e a de qualquer porta aberta ou fechada, é que ela é celebratória de duas formas: o cego que se celebra e a celebração cega. É como um cubo em perspectiva, nunca consigo optar. Mas isso digo de memória, porque hoje ela é apenas um cálice cego suspenso numa mão vazia. Ela já me pareceu que iria acordar justamente quando bebesse, ela já me pareceu que justamente ao acordar, beberia. Hoje ela é uma pedra fria que sugere um brinde. Ela já foi metáfora da minha própria vida e hoje é uma estátua barroca sem nome que mora em cima de um museu. Esta é a imagem da cegueira.

3 comentários:

Casaverde. disse...

Nossa! Genial! Uma porta aberta é tão impossível como uma porta fechada! Genial! Genial! Aqui no teu blog tudo é com exclamação! Vou dormir feliz agora! Fábio!

Luana Cavalcanti disse...

tsc tsc tsc... permita-me, mas mais uma vez: clariceana!

rs

Mirella Adriano disse...

égua!

hahahaha